Conforme anunciado, hoje começo a postar uma entrevista com riquíssimo conteúdo com os diretores de As Horas Vulgares, longa baseado no romance Reino dos Medas, de Reinaldo Santos Neves. O filme só será lançado no início de outubro, mas Rodrigo Oliveira e Vitor Graize nos instigam a assistir ao filme que conta o reencontro de vários amigos com o presente e com o passado na noite que pode ser a derradeira para um deles.
O longa foi rodado em 31 dias, em PB, na cidade de Vitória-ES, também personagem do filme. Neste primeiro momento posto metade da entrevista com o diretor Rodrigo Oliveira que, gentilmente, encontreou tempo livre em meio a correria da vida profissional para responder às perguntas.
8º dia de set. O assistente de direção Jefinho Pinheiro acerta o próximo plano com os diretores Vitor Graize e Rodrigo Oliveira. Foto: Bianca Pimenta |
Fernando Graf: O filme é baseado no romance de Reinaldo Santos Neves, Reino dos Medas, que, por coincidência (ou não?) também é a primeira obra do autor capixaba. Por que Reino dos Medas foi escolhida como base para o seu primeiro longa?
Rodrigo Oliveira: O fato de ser um primeiro romance que gera um primeiro filme é coincidência, mas daquelas que só trazem coisas boas. Em julho de 2009 o Vitor Graize, que co-dirige o filme comigo, me entregou o romance do Reinaldo Santos Neves, perguntando se aquilo ali dava um filme. O edital de longas da Secult estava aberto, e ele queria inscrever um projeto nele. Até aquele momento nós nunca tínhamos sequer imaginado a possibilidade de um dia fazermos um filme de ficção juntos. Mas ele vinha da experiência de dirigir um documentário de média-metragem para a televisão (o “Olho de Gato Perdido”, no qual fiz a assistência de direção), e eu, no primeiro semestre daquele 2009, tinha escrito meu roteiro de longa de ficção, um filme da cineasta Paula Gaitán (chamado “Sobre a Neblina”, que está sendo rodado neste momento em Minas, com o Vitor trabalhando na produção). Eu estava muito bem assentado na carreira de crítico de cinema, e ele como jornalista da Gazeta. Separadamente, nós íamos nutrindo esse amor pelo cinema e, mesmo sendo amigos há quase dez anos, ainda não tínhamos pensado num filme juntos. Algumas semanas depois dele me entregar o livro, eu fui para o Festival de Gramado e levei aquilo na bolsa. Comecei a ler sem saber onde ia dar. Em algum momento eu abandonei as atividades do festival para ler o livro, e quando terminei, escrevi para ele dizendo que ali dentro existia um filme nosso. Na semana seguinte nós nos encontramos, e começou a escritura do roteiro.
FG: Essa obra do Neves completa 30 anos agora em 2011 e As Horas Vulgares retratam uma Vitória do início do século 21, 20 anos após o romance. Como foi o processo de adaptação?
RO: O Vitor é um grande conhecedor da obra do Reinaldo Santos Neves, e amigo pessoal dele. Foi ele quem fez o contato com o autor, que desde o início nos deu liberdade total para criarmos em cima do seu romance. E assim, “As Horas Vulgares” é mais uma inspiração sobre o livro que necessariamente uma adaptação. O filme se passa no começo dos anos 2000 porque foi essa a época que eu e o Vitor chegamos à Vitória para cursar jornalismo na Ufes (ele de Manhuaçu-MG, e eu de Volta Redonda-RJ), e o livro fala exatamente de jovens artistas que vivem em constante estranhamento com a cidade, que chegam aqui para estudar, para viver, e também dos amigos que partem, que abandonam a cidade. Um dos personagens fala em algum momento: “Vitória é o lugar aonde as pessoas vem só para terem certeza, logo depois, que precisam ir embora”. Foi isso que a gente viu acontecer com o nosso grupo de amigos (do qual você faz parte, Graf). Uma grande comunidade de pessoas que se reúne e estabelece laços afetivos profundos e imediatos, mas que começa a se desfazer quando a vida em Vitória vai apresentando entraves para a expressão completa do seu espírito. Alguns saem para trabalhar, outros para continuar a estudar, outros voltam para suas cidades natais, e de repente aqueles amigos com quem você convivia diariamente na época da faculdade ficam cinco, seis anos desaparecidos. E nesse momento a gente percebeu que a experiência de ser jovem em Vitória não tinha mudado muito desde a época em que o Reinaldo escreveu o livro.
"Vitória é o lugar aonde as pessoas vem só para terem certeza, logo depois, que precisam ir embora"
A partir desse conceito central (um filme sobre o esfacelamento de um grupo de amigos e as conseqüências disso na vida de cada um dos participantes), o resto foi todo se desenvolvendo de maneira bem natural. E em como todo processo de cinema, o roteiro foi sendo reescrito até o momento das filmagens. Quando entram os atores na jogada – e os atores sempre trazem dimensões novas à personagens que você acreditava dominar –, o roteiro precisa acompanhar o fluxo que eles provocam. Ainda que a estrutura do filme estivesse toda pronta desde este roteiro que nós inscrevemos no edital, lá em setembro de 2009, algumas coisas surgiram mesmo só poucos dias antes de filmar. Vem à cabeça agora uma cena que eu gosto muito, e que entrou no corte final, entre a Érika (mulher do protagonista Lauro) e Júlia (a melhor amiga de Lauro, e que o apresentou à Érika). É um encontro das duas na porta do apartamento da Júlia, com a Érika tentando encontrar o marido que sumiu há três dias sem dar notícias. Essa cena só surgiu porque quando as atrizes Júlia Lund e Sara Antunes começaram a interagir nos ensaios, tudo o que vinha delas era tão bonito e tão significativo que a gente escreveu uma cena só para poder vê-las atuando juntas. É o único momento exclusivamente feminino, num filme todo masculino. Essa cena, hoje, é dos momentos mais fortes do filme, e só existe por causa das atrizes. É uma homenagem ao encontro das duas.
FG: Assim como em Reino dos Medas, o Jazz dá o tom em as Horas Vulgares. Ele é só um adereço ou, no processo de filmagem, também foi preciso improvisar ("play jazz") para chegar ao resultado final?
RO: O filme foi todo feito à base de jazz. O roteiro, a preparação, as conversas com os atores, a maneira de montar um plano, a decisão de onde pôr a câmera, tudo. Em algumas seqüências de câmera na mão, o fotógrafo Lucas Barbi colocava Eric Dolphy para tocar no iPod e ia filmando através da música. Nós tínhamos muito pouco espaço para o improviso, porque era uma estrutura muito grande de produção para um filme muito barato, e que precisava ser rodado em 31 dias de qualquer jeito (não havia dinheiro para mais que isso). Então era preciso ter muita certeza do que a gente queria para chegar rápido a um resultado e seguir em frente sem comprometer a produção. E eu acho que a beleza do cinema é que o improviso real só se dá quando tudo está muito bem preparado – e aí, talvez, jazz e cinema se encontrem. E assim, por mais que a gente tivesse essa estrutura toda por trás, no momento em que a câmera rodava, tudo o que se dava entre ela, os atores e a cidade era uma espécie de improviso (e eu e o Vitor precisávamos apenas, como no jazz, retomar o tema central da peça de vez em quando, e deixar os atores e a câmera criarem em cima daquilo).
"Nós tínhamos muito pouco espaço para o improviso, porque era uma estrutura muito grande de produção para um filme muito barato, e que precisava ser rodado em 31 dias de qualquer jeito (não havia dinheiro para mais que isso)"
FG: O trabalho do cineasta não finda com a finalização do filme. Depois há a distribuição, participação em festivais, enfim, uma série de atividades posteriores a serem executadas. Mas da ideia na cabeça até a finalização do filme (já está 100% finalizado?) quanto tempo se passou e quais foram as maiores dificuldades?
RO: Entre a primeira página do roteiro escrita e a primeira exibição do filme pronto talvez se passem dois anos e dois meses, por aí. Um filme pequeno como o nosso, feito num lugar sem nenhuma tradição de longa-metragem, sempre vai encontrar dificuldades de produção. Mas, muito amparados pela experiência da equipe que trabalhou com a gente, nós não deixamos de rodar uma imagem sequer das que planejamos, o que é raro para um filme desse porte. Tudo o que precisava ser filmado foi filmado. E isso deixa mais evidentes as dificuldades que realmente interessam, que são as dificuldades artísticas. Então eu diria que os únicos problemas que nós tivemos foram problemas de ordem estética e conceitual, e estes são muito divertidos e a razão pela qual a gente faz cinema. E hoje, uma vez que o filme esteja pronto, são as soluções para esses problemas que mais saltam aos olhos, que estão impressas nas imagens. E eu espero que nós tenhamos nos saído bem no gerenciamento desse caos.
FG: O longa tem 100 minutos e foi filmado em PB. Qual o motivo da opção por gravar em PB e qual a maior dificuldade em narrar as últimas horas de alguém em uma hora e quarenta minutos?
O filme, no fim das contas, ficou com 120 minutos. Desde que eu li o livro eu sabia que nós íamos rodar em preto-e-branco. Uma das razões era pelo caráter atemporal da imagem PB, de um resquício de história que ela naturalmente traz, como se o PB fosse a cor original do cinema, a cor da ficção, e que o cinema colorido seja só uma deturpação dessa “realidade” que é o PB. Eu já tinha a experiência de rodar um curta-metragem em PB, meu filme de formatura na escola de cinema da UFF (que, aliás, tem o mesmo fotógrafo e a mesma diretora de arte de “As Horas Vulgares”, Lucas Barbi e Manuela Curtiss), e queria poder lidar com isso de novo, num filme maior, com mais possibilidades estéticas. O preto-e-branco desloca toda a atenção do olhar para os volumes, para o movimento dos corpos, para a fisicalidade das coisas, e num filme em que os personagens falam muito e andam muito, isso pareceu ressaltar esse aspecto das formas, da oposição entre o claro e o escuro e como os corpos ressurgem mergulhados nesse ambiente.
Por mais que o filme tenha um protagonista claro (Lauro), essa é mesmo a história de um grupo, e o mais difícil era conseguir, neste curto espaço de uma noite, dar materialidade e profundidade a todos esses personagens que povoam a vida do protagonista, com quem ele se encontra ao longo da noite. Para nós não bastava apenas montar o mosaico de uma juventude, mas investigar a fundo, e em pouco tempo, a natureza constitutiva de cada um dos pedaços que compõe esse mosaico.
"O preto-e-branco desloca toda a atenção do olhar para os volumes, para o movimento dos corpos, para a fisicalidade das coisas, e num filme em que os personagens falam muito e andam muito, isso pareceu ressaltar esse aspecto das formas, da oposição entre o claro e o escuro e como os corpos ressurgem mergulhados nesse ambiente"
Em breve, a segunda parte da entrevista com Rodrigo Oliveira. Na sequência, Vitor Graize nos responderá mais sobre As Horas Vulgares.
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